Saímos de 2014, mas 2014 não saiu da gente. Pouco depois de publicar meu último texto da hashtag #leiamulheres2014, me foi sugerido escrever sobre o Teste Bechdel. Como o teste já era familiar para mim desde que descobri o canal do YouTube Feminist Frequency – há dois vídeos específicos sobre o tema –, eu já conhecia suas regras. Para passar nele, um filme:

1. Deve ter pelo menos duas mulheres (com nomes)
2. Que conversam uma com a outra
3. Sobre alguma coisa que não seja um homem.

Atender aos requisitos citados não é sinônimo de qualidade do filme, assim como eles não servem como parâmetro para aferir o quão feminista a película é. Por exemplo, o filme mais machista e conservador visto nos últimos dias (Loucas pra casar), consegue (incrivelmente) ter um ou dois diálogos entre mulheres sobre outro assunto além do personagem de Márcio Garcia. O teste pede um mínimo de representação (e interação) feminina que não tenha nada a ver com uma personagem masculina. Ainda que não seja muito o que se pede, é interessante perceber como são poucos os filmes que passam no teste.

Contudo, como não sou eu o colunista de cinema do site, a sugestão dada não era escrever sobre o teste em sua modalidade tradicional, mas tentar aplicá-lo em minhas leituras. Eu gostaria muito de poder olhar para a lista de livros lidos em 2014 e identificar quais atendem aos três requisitos, mas a tarefa apresenta inúmeras dificuldades. Por exemplo, eu precisaria me lembrar de tudo de todos os livros – ou ao menos tê-los em minha biblioteca pessoal, para poder folheá-los em busca de uma cena – pois não pensava no Bechdel enquanto os lia. É fácil se lembrar de exemplos que claramente passam (Por escrito, de Elvira Vigna; Um, dois e já, de Inés Bortagaray; Queria ver você feliz, de Adriana Falcão; Seconds, de Bryan Lee O’Malley) no teste, mas há toda uma área cinzenta de dúvida quanto aos demais. Além disso, não sei se há um IMDb para personagens de livro, tampouco um site que se proponha a discutir se um livro passa ou não no teste (achei uma lista no Goodreads, contudo).

Decidi, então, que analisaria as próximas obras que lesse. Em tempos de ressaca literária, infelizmente não tenho lido muito, como é perceptível na lista a seguir. É mais uma curiosidade do que algo com fins estatísticos, mas o fato é que esta passou a ser uma questão a ser observada nos livros que leio.

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Caminhada – Hermann Hesse

O narrador divaga sobre suas viagens e sobre a vida e, pela própria natureza introspectiva da obra, não há espaço para o diálogo entre mulheres.

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Operação Impensável – Vanessa Barbara

Esse foi difícil. A história de Tito e Lia é um tanto restrita ao relacionamento dos dois e apresenta pouquíssimos diálogos – todos (ou quase) entre os dois, quase sempre em discurso indireto. Lia, a narradora: fala com a mãe, mas não lemos tais conversas; troca e-mails com Elena, aos quais não temos acesso; e, finalmente, tem uma breve conversa telefônica.

Antes, eu telefonara para o número de celular suspeito, perguntando “se a Carol estava”. Quem atendeu disse que não havia nenhuma Carol naquele número e então eu perguntei quem estava falando – era a Olga.

Creio que seja insuficiente para constituir uma conversa. É um dos melhores livros que li em 2014, mas não passa no teste.

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O dia em que troquei meu pai por dois peixinhos dourados – Neil Gaiman

Enquanto o protagonista (com sua irmãzinha) tenta desfazer a troca citada no título, as breves interações entre mulheres se relacionam sempre com aquilo que os dois irmãos buscam: o pai. Não passa, portanto.

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Sem fôlego – Brian Selznick

Esse é um caso interessante. A história de um garoto é contada literariamente enquanto, em paralelo, a de uma menina é narrada por meio de ilustrações – como se víssemos um filme que se alternasse entre o cinema mudo e o falado. Não é por a guria estar na parte do cinema mudo, contudo, que ela não possa se comunicar: há uma conversa entre ela e uma mulher por meio de bilhetes. Passa, portanto.

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Rani e o Sino da Divisão – Jim Anotsu

Não há discussão: Rani, a protagonista, interage com uma série de mulheres (que também conversam entre si, o que torna indiferente que a principal personagem seja uma menina) em todo o livro e garotos são um dos assuntos menos discutidos. Passa com louvor.

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Bidu: Caminhos – Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho

Decidi que conversar sobre um cachorro, mesmo sendo do sexo masculino, não desobedeceria ao teste Bechdel. Mesmo assim, faltam nomes para as personagens femininas que aparecem, assim como as interações entre elas são breves demais para constituírem conversas. Não passa, portanto.

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Piteco: Ingá – Shiko

Nessa história em quadrinhos há duas personagens femininas fortes: Ogra, a única guerreira da tribo (pelo que entendi, não é a única mulher, mas a única pessoa com tal característica); e Thuga, a xamã e narradora da história. Pelo que me consta, elas não trocam uma palavra. Não passa, portanto.

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A História de “O” – Guido Crepax

Pensei que o livro não fosse passar – interações breves demais, ausência de nomes ou de outro tópico nas conversas que não o desejo sexual dos homens –, mas passa: há um capítulo em que praticamente não aparece homem algum, o que facilita.

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Poemas – Wislawa Szymborska

Desculpa, mas eu não saberia avaliar um livro de poemas segundo o teste Bechdel. Próximo!

extraordinária

A extraordinária garota chamada Estrela – Jerry Spinelli

O narrador masculino me fez pensar que em nenhum momento a personagem do título teria uma conversa com outra garota registrada no livro, mas há alguns momentos em que isso ocorre. Logo no começo, a vilã da história – Hillari Kimble – deixa claro para Estrela que não quer receber parabéns pelo seu aniversário no dia seguinte (!?) e esta concorda em não fazê-lo. Esse é um bom exemplo de como a conversa não precisa ser das mais significativas para passar no Bechdel.