Desde que as vanguardas modernistas entraram em cena causando estardalhaço no início do século XX, as discussões concernentes à arte se tornaram um assunto absolutamente mais complexo e delicado. Novos problemas passaram a ser de consideração obrigatória, muitos artistas passaram a criticar o estatuto da arte existente até então, e as obras artísticas ganharam feições muito distintas.

A própria concepção de arte parecia se esfacelar, ou pelo menos a concepção de arte até então vigente. Os experimentalismos que espocavam por todos os lados, aliados a uma vontade libertária por parte dos artistas (obcecados pela recusa ao establishment, qualquer que fosse), esticou o conceito de arte, forçando sua elasticidade para que mais e mais produções ganhassem sua chancela. O mictório de Duchamp só pôde ser alçado à categoria de objeto emblemático em meio a uma refrega tão encarniçada como essa.

Se houve, nesse sentido, um questionamento saudável contra preciosismos e engessamentos (sejam eles de cunho academicista ou conservador-tradicionalista), é forçoso, por outro lado, reconhecer que dado o esticamento do conceito de arte, a ressaca “pós-vanguardas” foi marcada por uma descaracterização acentuada desse conceito. A vontade libertária daquele momento histórico forçou a tal ponto os limites, as estruturas e os pressupostos típicos da arte (conforme remanescentes da cultura burguesa do século XIX) que aqueles que quiseram a ela se dedicar posteriormente tiveram que encarar uma dura jornada de reconstrução para se inserirem naquele universo agora cronicamente fragmentário.

Ainda que o livro Frutos estranhos, de Florencia Garramuño, se debruce mais especificamente sobre obras artísticas do Brasil e da Argentina, seu subtítulo abraça pretensões maiores: Sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Nesse sentido, portanto, creio que ela não pode se furtar à consideração de problemas que remontam ao momento histórico acima mencionado.

O livro de Garramuño se estrutura a partir de exploração de algumas obras de arte que, segundo a autora, são inespecíficas, isto é, que não pertencem a campos e designações estabelecidas. Essas obras supostamente buscam intertextualidade e comunicação com outras formas de arte e de expressão, não podendo, portanto, enquadrar-se nas delimitações tradicionais de sua linguagem. Desse modo, a literatura incorpora a gravura e a fotografia para melhor se expressar, as artes plásticas incorporam novos elementos às exposições (como o próprio espaço do prédio, por exemplo) para transcender sua capacidade de afetar o visitante e assim por diante.

A síntese do argumento central de Frutos estranhos encontra-se na seguinte passagem:

Para além de uma essência produzida coletivamente, para além da identificação homogênea que funda o pertencimento, a grande aposta da arte inespecífica se propõe como uma invenção do comum sustentada num radical deslocamento da propriedade e do pertencimento. (p. 102)

Refletindo sobre essa colocação, me parece que o universo da arte ainda vive à sombra das explosões vanguardistas e modernistas do início do século XX. Correndo o risco de soar por demais pessimista na escolha das minhas metáforas, diria que a arte contemporânea percorre os campos abertos pelas vanguardas mas pontilhados pelos escombros das artes “tradicionais”, ainda respirando o pó que sobrou da derrubada daqueles muros.

Precisamente aquilo que Garramuño saúda com uma dose considerável de otimismo, como uma “aposta da arte contemporânea”, não consigo enxergar senão com uma dose talvez exagerada de ceticismo. É possível entender a posição da autora, pois a arte inespecífica supostamente tem a vantagem de estar “mais livre” das convenções e ditames de um campo específico. No entanto, ao mesmo tempo, não posso deixar de pensar que o fardo dessa liberdade inespecífica é justamente o não-pertencimento. O que é mais artisticamente proveitoso: viver sem raízes pela liberdade de se movimentar ou constituir raízes como forma de amparar-se rumo à transcendência?

É preciso dizer que os limites desta resenha não permitem senão um apanhado breve e sintético de um argumento mais longamente trabalhado, amarrado e burilado. Feita a mea culpa, creio que toca naquele ponto que me parece mais essencial de Frutos estranhos: é possível falar de uma tendência minimamente comum ou uma unidade (por mais subjacente que seja) na estética e na arte contemporâneas?

Garramuño parece apontar que a inespecificidade é, justamente, a unidade. É como se, de modo subjacente, houvesse um pertencimento dos não-pertencentes; é como se todos, por não se identificarem, passassem a se identificar pela não-identificação. A autora aponta que essa tendência insinua-se numa realidade observável “extra-artisticamente”, numa contemporaneidade onde os vínculos pessoais tradicionais estariam se esvaindo e dando espaço a novas sociabilidades.

Não se sabe ao certo quais são essas sociabilidades. Nesse sentido Frutos estranhos não aprofunda sua análise. Seu mote principal é a arte e a “porosidade de fronteiras” (p. 16) com que ela se apresenta contemporaneamente. A análise da inespecificidade “extra-artística” não consegue assim desenterrar integralmente o diálogo entre a vida e a arte, entre realidade e a ficção. Para fazê-lo é preciso compreendê-las, em primeira e última instâncias, como dimensões umbilical e dialeticamente conectadas.

Os dilemas que o livro sublinha são dilemas semelhantes àqueles que apontei no início do texto, típicos da ressaca “pós-vanguardas”. Nesse sentido, pois, as obras de arte inespecíficas trazem em seu bojo questionamentos que jazem em aberto há algum tempo, sendo um dos principais aquele que pensa se essa diluição de parâmetros (e de especificações) é sinônimo de liberdade ou se se aproxima mais de um estar à deriva.

Diante disso Frutos estranhos suscita dúvidas instigantes. Bordeja uma que me parece centralmente importante: a unidade pela negação dará frutos? O título parece sugerir que sim, e que esses são “frutos estranhos”. Porém, se o estranhamento for o que os une (i.e., o fato de eles não pertencerem a designação alguma), serão eles capazes de forjar um pertencimento positivo (que seja mais do que o negativo do establishment)?