Difícil falar de Leminski sem falar de sua persona. O mesmo drama aqui relatado sobre Ana Cristina Cesar, mas pior. É fato que Paulo Leminski (1944-1989) é conhecido por sua marginalidade, por sua boemia, por sua poesia que cativa até mesmo aqueles que sempre dizem não gostar de poesia. Também sempre se lembra de sua naturalidade, curitibana como a deste que vos escreve, o que também faz com que seus leitores não paranaenses atribuam-lhe todos os estereótipos ligados à cidade. Talvez ele até mesmo contribua para que isso esteja atrelado a sua arte. Talvez não. O que é preciso é entender como sua poesia parece se manter tão bem sistematizada mesmo sob julgamento daqueles que não a apreciam. Ou melhor: por que todos leem Leminski e conseguem defini-lo?

Para chegar a resposta, esqueçam, é claro, daquele Leminski à Bukowski. Falamos de um poeta que ainda é, arrisco eu, pouco lido realmente, por inteiro. Por aí, pelas redes sociais, pelos livros didáticos, citam-se somente os mesmos versos, geralmente seus autointitulados relaxos ou um ou outro poema de livros posteriores, principalmente aqueles ainda publicados em vida. Não se cita, por exemplo, nada do Catatau (1975), sua obra prosaica-poética, multifacetada e experimental, ainda a ser descoberta até pela maior parte da crítica literária nacional. De seus ensaios nem se fala, mesmo sendo reeditados recentemente pela editora da Unicamp (Ensaios e anseios crípticos). Que Leminski podemos encontrar, por exemplo, em Toda poesia (2013), reunião de sua poesia pela Companhia das Letras? Haveria todo um Leminski ainda a se ler?

Há todo um Leminski pelo menos. Não diria ser uma empreitada necessariamente difícil descobri-lo. Sua obra propriamente poética é na verdade não muito extensa: em vida, lançou apenas Quarenta clics em Curitiba (1976), Caprichos e relaxos (1983) e Distraídos venceremos (1987). Em seguida, Alice Ruiz, sua viúva, lançou outros livros post-mortem, que já vinham sendo organizados, como La vie en close (1991), O ex-estranho (1996) e Winterverno (2001). Nessa nova edição de sua poesia compilada, incluem-se ainda alguns outros poemas esparsos, perdidos nas edições independentes de Polonaises e Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase. Todos são livros relativamente curtos, com poemas não muito longos, alguns até visuais (ou seja, graficamente mais elaborados).

Leminski, como diz em alguns de seus ensaios, sempre almejou a poesia “acessível”; não no sentido de “fácil”, mas não aristocrática, que se apropria da linguagem por inteiro, inclusive aquela da publicidade, para ressignificá-la na prática. Uma linguagem poética que, a princípio, poderia ser entendida por todos, não apenas por “iniciados”. Ele, sim, talvez seja um iniciador. Nesse sentido, acredito que o poeta conseguiu o que queria: muitos começam a ler poesia por sua causa. Agora, será que podemos reduzi-lo a apenas o início, como se fosse um antigo livro de infância cuja leitura abandonamos ao crescer?

Antes de tudo, precisamos compreender de onde Leminski veio. Digo não sua cidade, mas sim de que literatura ele surgiu. Trata-se de alguém nascido em um período anterior ao regime militar, que viu ainda a cultura brasileira se expandir nos centros urbanos em uma diversidade incomum. Desde cedo se interessou, por exemplo, pela poesia concreta, tão em voga à época do lançamento de sua teoria pelos irmãos Campos e por Décio Pignatari. O jovem poeta curitibano, empolgado pela neovanguarda paulistana, chegou até mesmo a encontrar os concretistas na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em 1963, muito antes até mesmo do experimental Catatau. Trata-se de dados biográficos que nos ajudam a encontrar esse Leminski iniciante, que nunca considerou a poesia como mero passatempo, como piano em sala de estar burguesa. Seus poemas sempre o demonstraram: a poesia sempre foi sua angústia, sua ansiedade.

Apenas em 1976 temos acesso ao Leminski publicado, aquele da edição independente de Quarenta clics em Curitiba, composto de poemas seus junto a fotos de Jack Pires, infelizmente não publicadas no recente volume da Companhia das Letras. Esses poemas, existentes antes do projeto do livro, já eram fruto de um escritor que passou pelo êxtase de uma vanguarda, da ânsia de se unir a um grupo para dele formar uma poesia – o que foi o Concretismo em um primeiro momento – para, então, buscar um caminho próprio. Em relação à velha cisma da poesia brasileira, nos termos de Marcos Siscar, Leminski talvez seja daqueles que mais se definiu por si mesmo. Não era concreto, não era marginal, era apenas estranho.

Esse estranho – que depois se tornou ex-estranho –, naquela capital tão provinciana na década de 1970, procurou em Quarenta clics se situar pela fotografia e pela literatura no cotidiano da cidade por poemas de sintaxe aparentemente próxima da prosa, porém subvertida por vezes graficamente, pela estrutura em versos ou até mesmo pela pontuação:

 

Ainda vão me matar numa rua.
Quando descobrirem,
principalmente,
que faço parte dessa gente
que pensa que a rua
é a parte principal da cidade.

 

Parece bobagem, mas, na obra de um poeta tão consciente da capacidade de ressignificação da palavra na página em branco, torna-se necessário se atentar a fatos como a pontuação dos primeiros versos. Na dicção do dia a dia, poderia-se dizer tudo em uma frase: “ainda vão me matar numa rua quando descobrirem…” Não é o que acontece aqui. Nesses pequenos exemplos, percebe-se que Leminski se apropria da oralidade e da linguagem prosaica, da gramática cotidiana para fazer algo ligeiramente diferente que possa conduzir a uma outra apreensão de uma determinada situação.

No caso do poema acima, a pontuação cria duas informações diferentes inicialmente: “Ainda vão me matar numa rua”, o que lemos assustados, sem saber a razão da possível morte; em seguida, a outra oração, que pela gramática usual deveria ser coordenada pela anterior, é deslocada na página, pelo ponto final e pelo verso. Em seguida, ela mesma é fragmentada em versos.

Considerando-se a posição de marginalidade que o eu-lírico toma para si, vê-se que ele pretende afirmar algo aparentemente consensual, o caráter público da rua na cidade, ao mesmo tempo reforçando que corre perigo de vida por pensar assim, ou melhor, por apenas estar na rua. Criam-se dois níveis de apreensão do poema: aquele baseado somente no primeiro verso e aquele da união entre esse e os outros versos, que seriam, sintaticamente, uma mesma sentença. A propensão ao texto sintético, que depois levaria o autor a estudar o haikai – e a reformulá-lo para si –, é notável desde sempre.

A aparente “facilidade” desse raciocínio, que pode levar alguns a pensarem que escrevo uma espécie de manual para leitores principiantes, na verdade é justamente um dos momentos que se demonstra a atitude de Leminski como poeta. Por ligeiras mudanças no estado normal das coisas da linguagem, ele leva o leitor para o texto. Nesse sentido, Quarenta clics, como livro que trabalha com registros do cotidiano, as fotos de Jack Pires, se torna uma obra coerente com a poética do autor, que se aprimora em suas possibilidades posteriormente.

Na rua, pelo mundo, anos depois os Caprichos e relaxos são lançados pela editora Brasiliense, responsável por seus lançamentos da década de 1980, bem como de suas biografias da compilação Vida e de seus trabalhos de tradução, sempre alinhados à sua criação artística. Apesar da contradição do título, os “caprichos” e os “relaxos” parecem também estar bem alinhados; são realmente coerentes entre si. Vê-se ainda um vestígio de alta exploração do poema em sua dimensão verbivocovisual, ao estilo concreto, como em “Cesta feira”:

cesta feira

Ao mesmo tempo, nota-se também o vestígio do Leminski cancioneiro, tratado por José Miguel Wisnik em nota na edição da Companhia das Letras, mas também por outros pesquisadores1. Sua poesia é, ao mesmo tempo, parte do cancioneiro, e vice-versa. Não sou especialista em música popular, bem longe disso, mas se percebe logo que a poesia concreta de Leminski nunca deixa seu pé no popular. “Cesta feira” trabalha com a dimensão oral do poema, pela brincadeira com a homofonia de “sexta” e “cesta”, sem deixar a repetição característica da canção de lado. Também não se esquece a dimensão gráfica do poema: a disposição dos versos (se é que ainda se pode falar de versificação) denota algo para a significação do texto. “Cesta feira” poderia ser definido como um capricho leminskiano, mas seria muito diferente de um relaxo seu?

Em um dos textos do apêndice de Toda poesia, temos “Leminski, o samurai malandro”, ótimo ensaio de Leyla Perrone-Moisés da época do lançamento de Caprichos e relaxos. A pesquisadora coloca a mesma questão que eu, sobre qual seria o limite entre um “capricho” e um “relaxo” no caso do poeta curitibano. Assim como outros autores de textos do mesmo apêndice, Perrone-Moisés define Leminski como uma espécie de beatnik concretista, o que é compreensível dado o contexto histórico, as referências culturais da época.

Certamente o autor tem uma ligação com a contracultura e com as poéticas neovanguardistas na metade do século XX, porém o que sempre é reforçado, muito acertadamente, pela pesquisadora é o caráter multifacetado dessa poesia. Sua diversidade de recursos formais, que poderia ser vista como contraditória por aqueles que pensam em literatura como times de futebol, vem do desejo do poeta de se formar por si mesmo, sua própria poética, não apenas aderir a um manifesto. Há revistas de poesia demais no mundo para se escolher apenas uma (algo que Leminski também afirmou em sua ensaística). A poesia do cotidiano pode muito bem ser “marginal” e “concreta” ao mesmo tempo, como em um dos poemas visuais de Caprichos e relaxos:

o inseto no papel

Em Distraídos venceremos, toda essa união de contrários que impressionou escritores, críticos e público anteriormente se estabelece de fato como diretriz da criação poética, junto ao interesse do autor pelo haikai. O viés semiótico dos novos poemas de Caprichos e relaxos – novos por serem somados aos volumes lançados independentemente antes, como Polonaises – o leva ao zen, à síntese verbivocovisual que também é, de certa maneira, a poesia japonesa, ao menos aos nossos olhos de ocidentais modernos. Bashô se torna uma obsessão para a estética de Leminski, o que também se percebe na biografia que escreveu sobre o poeta (vejam, novamente, Vida). Distraído em sua elucubrações, o poeta se esforça ao máximo em tentar explorar a linguagem para sua expressão, como no poema abaixo:

o que quer dizer

A necessidade da comunicação de uma mensagem (dizer) e da expressão de um desejo (querer) se unem em um poema que, por sua estrutura truncada (inclusive visualmente), demonstra a angústia da criação, da transcriação (no caso da referência à tradução segundo Haroldo de Campos) se percebe pela leitura. A reflexão sobre a atividade literária, sobre a posição da poeta é certamente um leitmotiv, uma constante na obra de Leminski.

Mais tardiamente, em La vie en close e O ex-estranho, a marginalidade do poeta, já presente no poema citado dos Quarenta clics, sobrepõe-se a essa ansiedade da criação, de modo que a eterna sensação de outsider do escritor parece levá-lo a questionar a razão de sua própria atividade. Leminski, além de citar constantemente em seus poemas desde o início os clássicos da literatura, também observa como não consegue se situar em um mundo que busca a todo tempo suprimir a autonomia do indivíduo, especialmente na modernidade. Nessas horas, a poesia se torna resistência.

Uma resistência que procura a todo momento se repensar em sua estratégia. A pesquisa formal da poesia persiste ao longo da produção de curta duração do poeta paranaense, que mesmo em poemas de uma obra póstuma como Winterverno, cujo título já é formalmente elaborado, ainda busca se renovar. Trata-se de um livro derivado de multimeios artísticos – na verdade, livro-álbum, cujos desenhos, da autoria de João Suplicy, foram infelizmente retirados na edição da Companhia das Letras. Nota-se isso desde sua abertura:

winterverno

De resto, como Guilherme Gontijo Flores afirmou no blog Escamandro, é pena que o cancioneiro de Leminski, digo, aquele que realmente foi composto para se tornar música por outros intérpretes, esteja ainda legado a uma nota na edição completa da Companhia das Letras. Guilherme critica inclusive a qualidade de “edição completa” de Toda poesia, afinal o cancioneiro não seria também poesia? Talvez isso se deva ao fato de se conhecer pouco ainda o trabalho do Leminski letrista (como “Dor elegante”, de Itamar Assumpção), ao contrário do que acontece com Torquato Neto, cujo cancioneiro é justamente o foco de sua obra poética reunida pela Rocco (volume 1 da Torquatália). Leminski, como bom ex-estranho moderno que é, conseguia transitar por diferentes áreas, como a publicidade, a canção popular e o romance, mas sempre voltava para a poesia.

Apesar dessa ressalva, Toda poesia cumpre um importante papel na restauração da poesia de Leminski como um todo, especialmente se lembrarmos da ausência de reedição de suas obras da década de 1980, lançadas pela Brasiliense, e também dos Quarenta clics, aos quais pessoalmente só tive acesso antes por bibliotecas de Curitiba ou por exposição. Aos amantes e aos inimigos de Leminski – talvez de sua persona apenas –, fica a dica de leitura. Toda poesia certamente pode nos ajudar a reestruturar uma imagem da poética leminskiana em um sentido mais amplo e crítico.

  1. Pessoalmente, gostaria de citar o amigo Josemar Vidal Jr., que vem estudando o cancioneiro leminskiano na universidade (por sua dissertação de mestrado) e fora dela (como em seu blog, Lírico Leminski).