Vou começar dizendo o óbvio: é difícil, extremamente difícil, falar sobre um livro de que se gostou muito. A impressão (talvez acertada) é de que é muito mais fácil elencar os motivos para não se ter admirado uma obra: o ser humano é extremamente crítico e facilmente enxerga aquilo que não lhe agrada – e, ao mesmo tempo, é polido demais para sair por aí apontando para tudo aquilo de que não gosta. Quando o livro me conquista, não resta muito a dizer além de: amei. “Amar” algo já engloba toda uma gama de preferências e sentimentos que não precisa ser muito explicada – até porque o amor nem sempre faz sentido. Mas há a obrigação, depois de anos falando sobre livros, de tentar apontar o motivo desse “amor”. O problema é que nenhum desses pontos parece ser justo com a obra, a ponto de resumir com exatidão o que torna algum livro digno desse amor.

Eu amei Tipos de perturbação. Não conhecia a prosa de Lydia Davis, e apenas a descobri recentemente, como a maioria dos leitores brasileiros. A primeira vez que ouvi seu nome foi através da programação da Flip 2013, que a trouxe para compor uma mesa com John Banville – a que eu mais queria ver, e que perdi. A segunda vez foi com o lançamento do livro propriamente dito, semanas antes do evento. E a terceira, com o anúncio da vencedora do Man Booker Prize 2013, que, sim, foi Lydia. Três ingredientes certeiros para fazer um autor até então obscuro virar assunto no meio literário brasileiro e deixar todos curiosos.

Lydia Davis é uma renomada contista, tem seis livros publicados (apenas um deles é um romance) e adora gatos. A edição publicada recentemente no Brasil reúne cerca de 50 textos seus. Mas não pense que Tipos de perturbação seja, então, um catatau com toda a sua obra: ele tem pouco mais do que 250 páginas, que agrupam histórias de homens, mulheres, crianças e (por que não?) alguns objetos, apresentados às vezes sob um olhar incessante de investigação, outras vezes apenas rapidamente, ressaltando pequenos detalhes. A maioria desses contos são, obviamente, curtos. Bem curtos. Mas você não precisa ler 100 páginas para sair gostando de Lydia. As dez primeiras já dão conta disso.

O fator mais importante do texto de Lydia Davis é o seu humor e sua capacidade de ser inventiva. Ela trabalha, tanto nos contos mais longos quanto nos mais curtos, elementos que aguçam e alimentam a percepção do leitor, deixando boa parte do trabalho de interpretação das histórias nas mãos da imaginação deste. Um exemplo disso é o conto “Ideia para um documentário de curta-metragem”, que depende diretamente da experiência do leitor com embalagens de alimentos para fazer sentido:

 

Representantes de diversos fabricantes de produtos alimentícios tentam abrir suas próprias embalagens.

 

Esse é o conto. Sim, isso é tudo. Sim, cabe em um tweet. Mas é o que a sugestão guarda por trás dessas linhas que confere graça ao texto, levando o leitor a ver essa ideia sendo executada. É por isso que o conto funciona. Ele consegue imaginar a cara de incompreensão e o constrangimento desses representantes ao olharem as etiquetas de “abre fácil”, enquanto tentam, de todas as formas, abrir um saquinho de Amanditas (até agora, o saco plástico que mais penei para abrir) 1. A experiência do leitor é imprescindível, pois ele precisa ter passado pela perturbação de gastar minutos da vida tentando abrir uma embalagem para entender a ironia e o humor por trás desses 103 caracteres (com espaços).

Alguns contos, por sua vez, apresentam um tom reflexivo e melancólico, que revela fortes ligações humanas, anseios e medos. O conto “Como funciona” explica basicamente as relações sexuais entre homem e mulher (lançando a questão sobre a importância do amor ou não nessas relações), e em “Solitária”:

 

Ninguém me liga. Não posso verificar se tem recado na secretaria eletrônica porque não saí de casa. Se eu sair, talvez alguém ligue enquanto estiver fora. Aí poderei checar se há recados quando voltar.

 

Em menos de quatro linhas, Lydia Davis destrincha toda a solidão de uma mulher e seu anseio por um sinal de vida qualquer do mundo fora de sua casa, algo que indique que há alguém que se importe com ela ou precise dela ao ponto de cometer uma ligação – qualquer ligação, só uma voz que quebre o seu silêncio solitário. Imagino a decepção da personagem quando atende o telefone e é saudada por uma funcionária do Santander tentando vender uma linha de crédito para sua conta. Outro texto, um pouco maior, que revela tal carga melancólica é “Questões gramaticais”, em que a personagem discute como deve se referir a seu pai quando ele morrer – e como fazer isso agora, enquanto ele está morrendo. Mas mesmo com toda essa ambientação pesada, há certa graça em pensar que, na morte, a preocupação do protagonista diz respeito a simples questões da língua. Enfim, cada pequeno conto da autora possui uma “sacadinha” genial que confere sentido e graça a algo pequeno e, aparentemente, sem significado algum.

Os verdadeiros destaques são, porém, seus textos mais longos. No primeiro, “Kafka prepara o jantar”, a autora coloca o escritor às voltas com os preparativos de um encontro que o deixa nervoso: o que servir? Do que ela gosta? Será que vai ser um fracasso como foi com a outra mulher? Uma das coisas mais difíceis na culinária, dizem, é escolher o prato certo, pois o peso do agrado sempre será grande. Em se tratando de Kafka, a dúvida é angustiante.

Um dos melhores contos do livro é “Saudades: um estudo de cartas escritas por alunos de uma classe do quarto ano primário desejando melhoras a um colega”. O conto trata disso aí mesmo que o título diz: a autora pega essas cartas e as analisa academicamente, demonstrando através do tipo de letra e das mensagens como cada aluno é, o que sente e como se comunica. O texto segue a estrutura truncada dos artigos acadêmicos analíticos. Porém, por se tratar de mensagens tão simples e incomuns, a leitura é curiosa: o leitor quer saber o que mais Lydia Davis pode revelar através desses desejos de melhoras, entender o que esses bilhetes estão fazendo em um estudo acadêmico ou o que eles significaram para alguém – o autor do artigo, o garoto no hospital, qualquer pessoa.

“A sra. D. e suas empregadas” é outro ótimo texto que explora a relação de uma escritora com todas as empregadas domésticas que já passaram pela sua casa. Como se fosse um diário, reunindo passagens escritas pela mulher e cartas enviadas pelas empregadas, a autora faz um histórico preciso das frustrações com as contratadas, causadas ou porque largavam o emprego por algum motivo maior, ou porque não agradavam a patroa do jeito necessário. A leitura é ágil, pois o conto inteiro é cortado em pedacinhos, com subtítulos como “A rotina de trabalho da sra. D.” e “A casa de praia”, cada trechinho dando conta de um aspecto da vida dela, como peças que, juntas, compõem um panorama geral da rotina da sra. D. – e contam muito mais sobre ela mesma do que sobre as empregadas.

Outros exemplos de contos maiores e fragmentados: “Coisas que descobrimos a respeito do bebê”, sobre as mudanças que uma criança provoca na vida dos adultos e como eles se adaptam a ela (não é um relato açucarado sobre a maternidade, mas, sim, bem realista, apontando tanto os lados bons como os ruins – por isso mesmo, capaz de mostrar como é forte o laço entre uma mãe e um filho); “Helen e Vi: um estudo sobre saúde e vitalidade”, uma análise feita sobre aspectos básicos da vida de duas idosas; e “Diário de Cape Cod”, um diário, literalmente, sobre a estadia de uma jovem em um hotelzinho em Cape Cod enquanto realiza alguns trabalhos e observa seus vizinhos.

Há muitos motivos para eu ter me apaixonado por Lydia Davis logo na primeira leitura: a inventividade, as maneiras diferentes e inusitadas de abordar histórias simples, o uso de situações banais que acarretam reflexões sobre amor, vida, morte, amizade e cotidiano, etc. Tudo isso faz com que Tipos de perturbação seja uma leitura indispensável, mas ao mesmo tempo parece que não exprime com exatidão o efeito que esses contos tiveram em mim. Esse nível de subjetividade, infelizmente, eu não sei como explicar.

  1. o editor ensinou a resenhista a abrir o pacote de Amanditas, mas o exemplo ainda vale