Minha impressão geral é a de que a Flip só começa de fato quando um pernambucano entra em cena. Não nego que o TOC, meu parceiro de todos os dias, me pedia para reconhecer algum elemento de ligação entre o primeiro evento da Flip 2012, que comentei por aqui, e aquele que comento neste texto: se 2012 rendeu a coluna Moves like Lenine, a respeito do excelente show de abertura do meu conterrâneo (2013 teve Gilberto Gil provocando polêmica por falar abobrinhas), nada mais justo do que procurar um elemento pernambucano na mesa 3, intitulada “Formas da derrota”, a primeira a que assisti nessa 11ª Flip.

Vibrei brevemente ao notar que eram de Marcelino Freire as palavras que abraçavam a memória de Graciliano Ramos, o autor homenageado do ano, num vídeo exibido antes da conversa entre Paulo Scott e José Luiz Passos. O momento em que o poeta e contista admitiu que, às vezes, utilizava o ponto de exclamação apenas por achar bonito foi o ponto alto da apresentação. Marcelino é pernambucano arretado, o que tornou meu reconhecimento de padrões uma tarefa fácil: satisfeito o TOC, pude prestar atenção na mesa.

O mediador aproveitou o momento inicial para, além de apresentar os autores, fazer as referências de sempre a Madame Bovary. Sempre um ótimo momento para observar como o pôr do sol deixa as nuvens de Paraty com um aspecto bonito, amarelo clarinho, azul e lilás em harmonia – tudo isso entrevisto pelo fundo vazado da Tenda dos Autores.

Minha digressão termina quando coisas interessantes começam a ser ditas. Jurandir, protagonista de O sonâmbulo amador, viaja para Recife nas páginas lidas por José Luiz Passos. Percebo, então, que Pernambuco não se restringiria ao vídeo introdutório – seria, ao contrário, a atração principal da mesa. 1

José Luiz Passos revelou a origem da trama e do protagonista de seu segundo romance: ao limar uma das partes de Nosso grão mais fino (estreia do autor nas narrativas longas), ele viu a oportunidade de desenvolvê-la a fim de criar um novo livro. Nele, exploraria a possibilidade do desencantamento com o mundo ocorrer com leveza. A busca por essa leveza estaria expressa tanto nesse protagonista que sonha – o sonâmbulo do título, suponho – quanto na centralidade da amizade na obra. Uma das frases mais lindas da noite – gostaria de tê-las anotado, todas – foi a de que Sancho Pança é quem mais se machuca no sonho de Dom Quixote.

Sinto que não consegui exercer o desapego com relação a nenhuma das temáticas abordadas por Passos: no moleskine, tentava resumir tudo o que foi dito por ele, pois nada parecia menos que importante. Ele contou a história de quando passou por Catende e visitou a usina onde nasceu: lá, ele encontrou um funcionário que se lembrava de muitas histórias de seu avô – era um homem emocionado por um passado que não era dele. Isso deu ao escritor a ideia de abordar, no romance, a história de quem ficou para trás e sonha com possibilidades não realizadas.

Passos soube contornar de maneira singular dois temas aparentemente inevitáveis: o da “nossa geração” (curto e grosso, ele falou que a diversidade é a única constante dela) e o das “influências e inspirações”, momento em que falou da “graça penetrante” de Xico Sá e da importância do filme O som ao redor, de Kléber Mendonça Filho. Outra declaração muito boa do autor é a de que ele se interessa por todas aquelas questões que acha que estão enterradas, mas que findam voltando para cobrar o seu preço, um preço altíssimo. Falou também mais uma frase bonita sobre sonhos compartilhados, mas eu estava vidrado demais em todo o contexto da fala que não consegui anotar nada além de “sonhos compartilhados”.

Foi então que Paulo Scott fez uma declaração de que gostei muito. Falou sobre como a revolução tecnológica destruiu a ingenuidade no nosso tempo.

Manifestações all around, o tema da política não poderia ficar de fora da mesa. José Luiz Passos, como sempre, fugiu da maneira óbvia ao tratar do tema, e expôs sua opinião sobre como escrever um romance político no mundo atual. Falou sobre o controle da imaginação, sobre o aprender a disciplinar a narração de um “eu” específico (no caso do O sonâmbulo amador, um pequeno burocrata internado numa clínica psiquiátrica de Olinda), sobre o examinar a fundo uma vida. Política não é só partido: há uma política na amizade, nos relacionamentos interpessoais. O lado mais obviamente político de seu livro – sua ambientação durante o começo de uma ditadura – não foi uma das primeiras coisas que ele decidiu quanto ao livro. Antes, o escritor se importou mais com o modo como os relacionamentos entre amigos (as negociações, as concessões, as imposições) são ações políticas.

(Fiz uma nota sobre falta de sutileza, mas não me recordo do contexto. Talvez tenha a ver com as anotações a seguir. Talvez.)

Respondendo a uma provocação inspirada do mediador, Passos apresentou seu lado ensaísta, pensando como Machado de Assis teria achado uma forma inovadora de mostrar nossos dilemas morais. Outra pergunta o levou a falar sobre como ele tem um apreço especial pela construção do personagem, trabalhando arduamente (ele passou seis anos escrevendo seu segundo romance) para que eles tenham uma suavidade que os distancie da caricatura, para que eles tenham autonomia como sujeitos e vozes eloquentes, enfim, para que eles sejam convincentes. Foi então que percebi que precisava ler o livro dele – e comprá-lo logo em seguida, de preferência, a fim de ter dois dedos de prosa com o autor na tenda de autógrafos.

Minha vontade era a de ter gravado tudo o que Passos falou e divulgar neste site. Não tendo essa oportunidade, finalizo o texto com mais algumas considerações desse escritor sobre a literatura e o sentido da vida. Lemos romances porque neles há uma organização de experiências, porque neles conhecemos pessoas muito diferentes do que nós somos (o distanciamento nos permite), porque neles vemos a vida humana sendo representada em pleno desenvolvimento. Nela, o escritor imagina possibilidades, uma imaginação que pode ser banal ou consequente. Nela, vemos formas de derrota (os personagens arcam com as consequências de decisões que elas não tomaram), mas também sentimos a possibilidade de redenção.

No final das contas, o mesmo pernambucano que inaugurou a Flip deste ano para mim também a tornou memorável. Se eu voltasse no dia seguinte, a festa já teria valido a pena.

  1. Aviso aos historiadores que, em 2350, estejam analisando impressões sobre a Flip 2013, resgatando crônicas publicadas na antiga (e extinta) rede mundial de computadores: o recorte deste texto não representa, pelo que percebi, o que a maioria do espectadores da mesa preferiu aplaudir.