Se você perdeu as duas partes anteriores, pode encontrá-las aqui e aqui.

O conto que sucede O resíduo de felicidade é O conciliador. Novamente é um casal que protagoniza a história, e vive, a exemplo dos outros casais de Fitzgerald, crises conjugais que acabam por desembocar em choro e, ocasionalmente, ranger de dentes.

Charles Hemple é casado com Luella. Ele é o arquétipo burguês, que leva uma vida regrada e frugal, feita mais de labuta e economias do que de gozo de suas possibilidades financeiras. Luella encontra-se mais desprendida dessa visão de mundo e procura conduzir sua vida através da exploração das faculdades do espírito, ansiando por algo que transcenda a mediocridade de sua vida corriqueira e até certo ponto banal.

A refrega conjugal tem assim seu primeiro combustível. Luella encontra esteio para seus sonhos nas companhias intelectuais, nas longas discussões e no contato com as grandes realizações da humanidade, enquanto Charles encara tudo isso como uma grande inutilidade. A batalha dos Hemple é encampada em maiores âmbitos por boa parte da literatura do período, que reflete um pouco da situação dos Estados Unidos da época, permeada da mentalidade “espiritualmente estreita” do babbittismo.

Fitzgerald, boêmio e adepto das divagações de Luella (significativamente uma heroína e não um herói) cria para Charles um destino inglório decorrente de sua moral restritiva e estéril:

“Charles Hemple sofrera um colapso nervoso. Vinte anos de labuta quase ininterrupta lhe pesavam sobre os ombros, e a recente pressão existente em sua casa fora demais para que pudesse suportá-la.” (p. 222)

Sangue ardente, sangue frio é um conto que explora as agruras da vida de um homem que é bondoso demais para uma sociedade marcada pela rigidez orçamentária e pelo individualismo. Jim Mather empresta 300 dólares a seu amigo Ed Bronson, o qual não só “se esquece” de devolver como também começa a encontrar augúrios de prosperidade, ainda que fugazes. A esposa de Jim, Jaqueline, se enfurece com o marido pela generosidade exagerada e cobra dele uma postura mais firme e inclusive mais fria diante das outras pessoas.

O pobre Jim tenta levar a cabo as sugestões/exigências da mulher e decide não ceder lugar a uma mulher no bonde. A ironia acontece quando a mulher a qual Jim não ofereceu o assento desmaia, e descobre-se que era sua própria esposa. Fitzgerald explora de forma aguda o conflito individualidade x solidariedade nesse conto, que é um dos melhores de toda a coletânea, na minha opinião.

Não se pode negar que o conto A soneca de Gretchen, apesar de ser o último, é um dos mais emblemáticos do livro. O conto apresenta um casal, Roger e Gretchen Halsey, que vive uma crise conjugal tal qual o casal Hemple, de O conciliador. Só que no caso dos Halsey, a crise é catalisada por um terceiro sujeito, George Tompkins, amante das artes e apreciador das conversas e da companhia de Gretchen (até onde Fitzgerald vai nenhum adultério ocorreu).

Roger é uma versão atualizada do tipo burguês descrito por Max Weber em A ética protestante e o “espírito” do capitalismo: individualista, vida frugal e conscienciosamente voltada ao trabalho duro, que o leva a acumular capital e “créditos de moral”. Não há espaço para desperdícios nem para qualquer atitude mais folgazã em sua dura conduta.

A descrição dela por Tompkins é irônica mas bastante acertada:

“- Você sabe como é o dia de um homem de negócios comum? – indagou Tompkins, ao dirigirem-se para o jantar. – Café pela manhã, oito horas de trabalho, interrompidas apenas por um almoço apressado e, depois, a volta de novo a casa, com dispepsia e mau humor, para proporcionar à sua esposa uma noite agradável…” (p. 259)

Nesse ínterim, Gretchen é enlevada por George (que possui feições de herói romântico) ao discutir a arte, literatura e a herança intelectual da humanidade de modo geral, fazendo com que ela veja seu marido como uma pessoa de mentalidade restritíssima, mesquinha e de espírito tão raso como uma poça d’água.

Não é de espantar, pois, que Roger desaprove completamente a relação entre Gretchen e George. E George, afeiçoado a Gretchen, encampa a briga com Roger dirigindo-lhe impropérios e criticando seu modo de vida e visão de mundo:

“- Mas você encara a coisa de um modo um tanto egoísta, meu caro – exclamou Tompkins. – Pensa apenas em você, no caso. Não lhe parece que Gretchen também tem certos direitos? Se você estivesse trabalhando em algum soneto maravilhoso…ou no retrato de alguma Madona ou coisa que o valha – ajuntou, fitando os cabelos à Ticiano de Gretchen -, então, claro, eu lhe diria que prosseguisse. Mas não está. Trata-se apenas de um anúncio tolo para aumentar as vendas do tônico de cabelo Nobald, e se todos os tônicos capilares fossem amanhã lançados no oceano, o mundo não perderia coisa alguma com isso.” (p. 266)

Mais uma vez é criticada a mentalidade que crescia cada vez mais ao longo do século XX, insuflada pelas recompensas quase instantâneas e fugazes da bull fair que era o mercado especulativo dos “loucos anos 20”. Fitzgerald não poupa o sarcasmo ao referir-se aos arautos dessa nova conduta existencial que ganhava força nesse contexto. Porém, ao mesmo tempo ele era um desses próprios sujeitos em alguma medida, com a diferença de que usava seus rendimentos para manter-se boêmio (não a toa que ele e sua mulher Zelda eram o “casal dos sonhos da Era do Jazz”). Esse sonho, porém, encontrou seu fim posteriormente, com o colapso nervoso de Zelda e os problemas relacionados ao álcool pelos quais passou Fitzgerald.

FITZGERALD, F. Scott. Seis contos da era do jazz e outra histórias. 7ª ed. Tradução de Brenno Silveira. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.