Os doze contos que compõem Quando fui mortal, de Javier Marías, lançado pela Companhia das Letras em 2006 – dez anos após o lançamento no seu país de origem -, tratam dos pequenos detalhes do cotidiano àqueles inexplicáveis, irônicos, deprimentes, extraordinários e assustadores com pessoas hediondas, decepcionadas, misteriosas, imorais e mortas – e pelo menos seus fantasmas fazem questão de surgir.

A nota prévia revela que grande parte dos textos foram encomendados – não são contos escritos para uma coletânea – e, por isso, o autor não pode gozar de toda a liberdade, mas ele deixa claro que não escreveria se não se divertisse e não despertasse um mínimo interesse em sua pessoa. Nessa mesma nota que antecede os contos, Marías nos conta o veículo, quando o texto fora publicado e quais eram as limitações ou elementos básicos pedidos por cada um e se houve necessidade criativa de extender o conto para finalmente estar completo. À parte isso, é revelado que alguns contos foram protótipos para algum romance posterior como Na viagem de lua de mel, que conta a história de um casal, a mulher enferma, e o marido observando a rua da sacada. A cena é uma das mais marcantes do livro Coração tão Branco.

Em quase todos os doze contos é possível encontrar algum traço de violência implícita, talvez somos pegos pensando que um suícidio em potencial será cometido assim que fecharmos uma página ou acompanhamos a visita noturna de um misterioso médico estrangeiro e suas curas mortíferas para maridos indesejados. Um segurança que constrata seu exterior extravagante – ternos espalhafatosos, sapatatos excêntricos e suiças bem preservadas – com sua consciência de nunca ser reconhecido pelo seu trabalho e por ser um fantasma vivo. Como se não bastasse, ele deseja a morte do seu chefe.

Em Menos Escrúpulos conhecemos uma mãe que pretende fazer um teste para atuar num filme pornô, mas para isso tem que enfrentar algo bem cotidiano: a quebra do “gelo” com seu novo colega de trabalho. O casamento é uma maldição constante para duas italianas que vivem em Paris, elas tem em comum um amigo e sua paixão por livros, mas o destino, suas decisões e consequências vem para testá-las aos limites da loucura no intitulado A herança italiana. Toda essa inquietude insana que palpita a cada novo conto toma um caminho metafísico em Não mais amores, um fantasma zombeteiro aparece para Molly enquanto ela lê clássicos de Jane Austen ou Conan Doyle.

Vouyerismo é praticado exaustivamente em diversos textos: binóculos, sacadas e janelas servem como ponto de virada, a observação e julgamento do narrador/personagem principal, transformando a arquitetura da narrativa de um tom leve e despretensioso para crítico e ácido – brincando com diversas ironias e largando o leitor à deriva de entrelinhas.

Javier Marías mistura tudo – com seu talento incomparável de narrador – o que extrai de um mundo prosaico para construir uma gama de temas que convidam o leitor a se desafiar e rir da similiaridade daquelas histórias que provavelmente aconteceriam na casa ao lado, na esquina ou com um amigo-de-um-amigo-seu.

MARÍAS, Javier. Quando fui mortal. Companhia das Letras, 2006. Tradução: Eduardo Brandão. 160 págs. Preço sugerido: R$46,00