Muitas são as perguntas sobre as nossas existências que não têm resposta definida, certa ou categórica. Chute uma pedra no caminho e me diga qual é a sua. Tem para todos os tipos de fregueses. Vai um “de onde viemos e aonde vamos?”. Ou que tal “o que existe depois?”. E ainda “crédito ou débito?”. Me olho no espelho, enquanto escovo os dentes, e a minha preferida é: a arte imita a vida ou a vida imita a arte? 

Nos últimos anos, a realidade tem dado um banho na ficção. O jornalismo, antes gonzo ou nonsense por opção, agora cavouca o absurdo. Talvez nem isso. Porque também basta esperarmos por qualquer pronunciamento oficial. De novo, para todos os gostos: preconceito, perseguição ao sexo, violência verbal e física, ataques, terraplanismo e outros conceitos sem sentido.

2019 não foi só um peso a mais na mochila. Foi uma máquina com rolo de alisar asfalto que passou por cima de todos. E parece – ouvi falar – que em 2020 seremos moídos. Resta o cansaço extremo, a exaustão. Estamos no período de férias. Mas fica a dica: se você não está minimamente cansado ou perturbado, já sei em quem votou ou indico que procure um médico ou terapeuta. 

Eu cheguei a dezembro do ano passado esgotada. Vivi amores e conquistas, mas as dores e os sustos foram maiores. A história da minha vida estava com uma protagonista nervosa, ansiosa, reclusa e insone. Acho que a falta de um sono de qualidade era o que mais me afetava. 

Segui na terapia com a psicóloga e fui à psiquiatra. E voltei com a prescrição de remédios e com a indicação de usar sem moderação uma das fórmulas que mais aprecio: literatura e ficção. Li No jardim do ogro, de Leïla Slimani; Caderno de memórias coloniais, de Isabela Figueiredo; e Maternidade, de Sheila Heti. Mas a leitura que mais me marcou em janeiro foi Meu ano de descanso e relaxamento, de Otessa Moshfegh. 

Segundo romance da autora, conta a empreitada de uma jovem bonita, herdeira de uma polpuda fortuna e que trabalha em uma galeria de arte – então, sem problemas aparentes na vida -, que planeja, com o uso de psicotrópicos e outros remédios de tarja preta, dormir por um ano inteiro. Imagina que, quando acordar, as coisas em 2000/2001 possam estar melhores, e o vazio que traz no peito poderá ter sumido. Um amigo me indicou o livro. Disse que seria “perfeito” para o meu verão. E eu fiquei me perguntando: o que ela faria se vivesse em pleno 2019/2020? 

A narrativa de Otessa é fluida e inventiva. Ela não poupa críticas à arte atual ou ao estilo de vida dos nova-iorquinos. E reúne humor ácido e impiedoso, destilando, entre um e outro mix de comprimidos, um rol de ideias e atos politicamente incorretos. O desprezo da personagem pelo mundo – e por si mesma – é gigante. E tudo carregando uma aura ridícula, mas absolutamente verídica a respeito do ritmo e das cobranças do mundo contemporâneo. De regras estéticas e padrões de beleza, passando pelo uso indiscriminado de drogas e remédios, relacionamentos familiares frágeis e catastróficos e relações amorosas abusivas. 

Autoficção e crítica genética à parte, pensei em um possível exercício narrativo. Em livre inspiração, me permitiria o ócio durante algumas semanas de recesso. Nem o notebook eu ligaria. Começaria, na segunda quinzena de dezembro, a aventura. Seguiria com o ansiolítico e pegaria leve – tenho um filho pequeno, ora. Mas me agarraria ao indutor de sono para buscar o alívio na alma e, claro, dormir. Minha psiquiatra não é tão maluca quanto a Dra. Tuttle do livro. E eu tenho uma mínima reputação a zelar. Então, diria para amigos e médicos que teria me enganado ao ler a receita e que, no lugar da eventual ingestão do Z. (não faria propaganda de remédio, mas poderia responder inbox qual é), acabaria tomando diariamente. Por 40 dias. Meus 40 dias de descanso e relaxamento. A dose de nuvem que me abraçaria. As pílulas que dissipariam tudo: dor, amor, consciência, preocupação, humor, tensão. Não teria como escolher; seria tudo evaporado no ar. 

Ficaria sabendo, como a personagem, que meus amigos não perceberiam a mudança (como a Reva não percebeu). Estariam todos cuidando de suas vidas e seus problemas. Eu não teria, é claro, um artista chinês para me escolher como sua musa inspiradora. Mas sei que, de forma similar ao que aconteceu no livro, eu faria coisas das quais não me lembraria depois. Nada de noitadas em boates, comida chinesa ou casacos de pele desconhecidos. Mas meu filho me contaria que eu teria dançado deitada na cama, sacudindo os braços. Eu acordaria e veria mensagens no celular das quais não me recordaria de nada ou comentários que – inacreditavelmente – eu teria redigido pelas ideias que traziam, mas zero recordação de que os teria feito. Com certeza, iria stalkear algumas contas (não sei se pediria desculpas depois). Publicaria fotos mais ousadas nos meus perfis do Facebook e do Instagram. E, talvez, mandaria mensagens de contexto sexual, e uma delas eu me lembraria e ficaria muito feliz se o convite fosse aceito para boicotar a campanha governamental de abstinência carnavalesca.

Um dia, eu pararia com os remédios e apreciaria o sol, o verde das árvores, o som da corda de um violão na minha caixinha bluetooth. E, anos depois, poderia pensar neste período como as melhores férias que eu havia me dado na vida inteira. 

É claro, abriria os olhos e nada teria mudado. Nem aqui, nem em Brasília. E eu não teria a resposta sobre ficção ou realidade. Sobre o que é verdade ou mentira, nem a respeito do que escrevo. Ultimamente, a ficção tem sido a boia que me faz navegar no mar cheio de óleo e com peixes inteligentes. Ou entre brigas nas redes sociais e pessoas armadas no trânsito. No julgamento desta ou daquela opção sexual. E de gurus que citam mais palavrões do que filosofia. A realidade como a mais perfeita distopia que deixaria qualquer aia com inveja de tanta criatividade retrógrada e mentalidades dignas de períodos obscuros da história. 

Mas uma coisa que precisaria ser dita é, ao mesmo tempo, a mais fácil e a mais difícil de todas: deixem a arte em paz e deixem a vida em paz. Está na hora de acordar. Acordem!