O filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche é uma das figuras mais mal interpretadas da história. Foi, certamente, figura polêmica e bastante controversa – mas não acredito que suas ideias sejam tão absurdas quando alguns costumam fazer acreditar. Apesar de tudo o que pode parecer, ele me soa extremamente contemporâneo: critica uma sociedade, uma moral e uma visão histórica que consideram certos valores como sendo os únicos – criando, assim, uma alteridade negativa.
A Gaia Ciência, um de seus livros mais lidos, é considerado como a última de suas obras positivas, mas não por isso é menos crítico. Muito pelo contrário: o bigodudo ataca a sociedade, a moral, a ciência e a religião de modo que muitos, ainda hoje, não o fazem.
Nietzsche ataca, por exemplo, as definições do que é bom para o ser humano. Ainda que muito atrelado a ideias de evolução e progresso, ele já as relativiza. Desconstrói, com clareza, a ideia da existência de benesses absolutas. Chega, na verdade, a falar que o mal é algo necessário, quiçá em maior medida do que o bem.
E é nesse livro que ele apresenta algumas de suas imagens mais famosas, como Zaratustra, por exemplo – que mais tarde tornar-se-ia a figura central de um livro inteiro. Também é nessa obra que Nietzsche fala do eterno retorno e que ele mata deus.
Talvez A gaia ciência não seja a obra central de seu autor. Mas é certamente uma de suas pedras fundamentais, provavelmente muito mais do que livros que ele escreveu antes. E que, mesmo que menos importante, foi claramente a base para boa parte do que ele escreveu depois.
É claro que não é uma obra totalmente isenta de problemas: por vezes Nietzsche mostra-se misógino e um tanto arrogante. Mas, enquanto isso gera certa problemática (a meu ver, imperdoável), a essência da obra continua ali. E o autor parece inclusive buscar certa licença poética para esses defeitos: em muitos trechos seu tratamento é mais literário do que filosófico.
Enfim: do século XIX, é talvez uma das obras fundamentais do século XX. E ainda extremamente relevante para se entender o XXI. Em março saiu (já existia em português, mas em edições diferentes) pela série de bolso da Companhia das Letras, em tradução de Paulo César de Souza, contando com apêndices muito bem trabalhados – o que a torna ainda mais interessante para qualquer interessado em filosofia.
A gaia ciência
de Friedrich Nietzsche,
tradução de Paulo César de Souza.
344 páginas.
R$ 25,00.
Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Companhia das Letras
Ora vejam.
Alguém que se acha no direito de decidir se ideias são ou não absurdas.
Alguém que acha imperdoável a arrogância.
E ainda assim acha que a essência da obra continua ali.
Me parece que a essência da qual o senhor fala não continua ali porque nunca esteve ali.
A ciência alegre não precisa de licença poética.
O livro começa com uma epígrafe. Sem entender, sem sentir o que está ali, melhor não ler as páginas seguintes.
Acredito, considero, acho. Eu uso essas palavras várias vezes.
(se você falasse que a resenha ficou ruim, pura e simplesmente, teria sido um argumento melhor, fica a dica – eu mesmo não gostei muito do texto, acho que poderia ter feito melhor, mas enfim, coisas demais na cabeça e tempo de menos)
Mas eu acho que devia adotar essa de usar epígrafes nos meus posts.
Só um pequeno reparo: na verdade quem matou Deus foi La Rochefoucauld. Nietzsche estava mais interessado nas consequencias dessa morte (o homem se reduziria,como parecia, ou estaria livre em busca de novas formas de pensar), bem parecido com Dostoiévski e Stirner. Aí então entra o Zaratustra, tentando criar novos valores para esse homem do futuro.
Vou dar uma pesquisada no verdadeiro assassino de deus. 🙂 Gracías.
Em qual livro do La Rochefoucauld que está isso, Marc? Se não me engano já tinha lido algo parecido…fiquei curioso por ir atrás agora.
Na verdade esse é um grande mal entendido. Nietzsche usa essa fala muitas vezes, mas não foi ele o primeiro a decretar tal morte. La Rochefoucauld foi um pensador pouco sistemático, mas com seu estilo de escrita acabou sendo fundamental para o filósofo alemão. Que eu conheça há apenas um livro escrito por ele, uma coletânea de aforismas: “máximas e reflexões”. Mas não há uma reflexão extensa sobre esse tema. O que existe é um questionamento sobre as transformações por que passavam as sociedades, com profundas consequencias na moralidade e na ação das pessoas. Logo, se Deus deixa de ser o norte da vida humana o que virá em seu lugar?
Aquele período pré-revolução francesa foi muito importante nesse ponto, vários pensadores e escritores enxergavam as mudanças e se questionavam sobre o que estava por vir. Um outro exemplo: Sade, que mostra como as relações podem ser subvertidas, abandonando os esquemas de autoridade conhecidos (sem querer ele já mostrava uma racionalidade instrumental que só viria se firmar no século seguinte).
Enfim, essa morte de Deus nada mais é que a modificação das sociedades, onde o conceito de pecado estava perdendo seu poder e um novo modo de pensar estava surgindo. Não que La Rochefoucauld tenha dito exatamente isso. Mas a leitura vale a pena, com certeza.