Em suas anotações no manuscrito do eternamente inacabado The Pale King, David Foster Wallace define o livro como “uma série de eventos na qual algo terrível ameaça acontecer, mas nunca acontece”.

Vivemos por eventos, o romance defende, mesmo do além sendo a total cara e focinho das intenções de seu autor, nem uma sílaba de sua idiossincrática prosa deturpada pelo editor Michael Pietsch – que o compilou através de anotações e capítulos escritos por Wallace nos doze anos que antecederam o seu suicídio em 2008, e que procederam à publicação de sua maior obra, Infinite Jest. (Sim, o Infinite Jest. A coisa mais nova. A coisa mais aclamada. A coisa longa, assustadora, linda etc. etc. etc., blá blá blá, e por aí e por lá. Infinite Jest, um livro para pesar mais que qualquer outro livro, e em jeitos bem mais que literais).

Depois disso, DFW escreveu ensaios e artigos e afins para o The Atlantic, a Rolling Stones, a Playboy, o New York Times; falou sobre lagostas, a experiência religiosa que é Roger Federer, a teoria cinematográfica de David Lynch e os bastidores de uma premiação pornô, sobre o 11/9 pelas lentes do interior dos Estados Unidos e sobre peixes que não sabem o que é água. Reinventou contos para o New Yorker, alguns deles incorporados dentro da história de The Pale King, e publicou várias compilações de todos esses seus trabalhos e outros (Oblivion, Brief Interviews with Hideous Men, Consider the Lobster e A Supposedly Fun Thing I’ll Never Do Again), sendo Brief Interviews a única publicada no Brasil até agora – como Breves Entrevistas com Homens Hediondos, pela Companhia das Letras, tradução de José Rubens Siqueira.

São referências a vidas cheias dessas grandes, importantes, emocionalmente devastadoras e rápidas horas nas quais centramos os nossos calendários. Moldamos de acordo com a nossa vontade esses tais eventos, eventos que preferem passar sozinhos, clicando em seus próprios ritmos. Mal os notamos. Embora os esperemos com aquela perigosa obsessão, aquela que deveria ser reservada a agências do governo e ex-namorados sociopatas, nós estamos tão cheios de adrenalina e de nervoso e de surpresa durante – tudo enrolado em artificial autocontrole – que eles terminam no exato momento em que os reavemos das outras pessoas para nós.

Mas o livro que Wallace se propôs a escrever aqui, ainda mais que o resto da sua ficção, não é sobre esses momentos. É sobre o que se encontra bem na esquina deles, uma jornada estacionária que poderia ser, tenta ser, quer ser, mas que nunca é. A benção além do tédio, inalcançável para a maioria que se encontra no meio disso (às vezes por acaso, às vezes não) e que no meio disso se perde: homens que, tal qual o seu autor, acham punição na distância entre o que as suas mentes podem entender e o que elas podem sentir. Punição de viver com a mesma pergunta oca batendo na cara, dia após dia, arquivo após arquivo, nome insignificante após nome insignificante, linha por linha, número com numero, amontoando em um frustrante nada. Punição de se ter e ser e respirar o que é maçante.

The Pale King se passa em um dos centros da Receita Federal, em Peoria, Illinois. Um quase fim de mundo, que espreita pelas beiradas das páginas em divagações e explosões e contemplações do mais belo afeto e agressão. Ele até abre com o que bem poderia ser um poema, um pedaço de paisagem que não é nem de perto a primeira coisa na qual se pensa quando alguém fala sobre David Foster Wallace:

Passadas as planícies de flanela e os diagramas de asfalto e as linhas de ferrugem enviesada do céu, e passado o rio marrom-tabaco circundado por árvores chorosas e moedas da luz do sol entre elas na água rio abaixo, até o lugar além do quebra-vento, onde campos não cultivados chiam estridentemente no calor matinal: sorgo forrageiro, ançarinha-branca, erva-serra, alegra-campo, noz-grama, hortelã, quinquilho selvagem, dente-de-leão, rabo-muscadínia, couve-espinha, arnica silvestre, hera-terrestre, malvão, erva-moura, tasna, aveia silvestre, ervilhaca, grama de açougueiro, feijões voluntariamente invaginados, todas as cabeças suavemente acenando com a brisa da manhã como a mão macia de uma mãe na sua bochecha. Uma seta de estorninhos em disparada do sapé do quebra-vento. O brilho do orvalho que fica onde está e evapora o dia inteiro. Um girassol, quatro ou mais, um caído, e cavalos à distância rígidos sobre as patas e imóveis como brinquedos. Todos acenando com a cabeça. Sons elétricos de insetos em seus afazeres. Luz do sol cor de malte e céu pálido e verticilos de cirro tão altos que não fazem sombra. Insetos só afazeres o tempo todo. Crostas ferrosas de quartzo e chert e xisto em granito. Terra muito antiga. O horizonte trêmulo, disforme. Nós somos todos irmãos. ((Tradução de Rodrigo Lattuada; não oficial. E sim, claro: uma nota de rodapé de homenagem.))

E se o que vem depois disso não perde tempo em ser cerebral, também nunca deixa de ser menos gostoso de falar e de se remoer. Tornando crônica a vida das pessoas que trabalham nesse centro, a escrita de Wallace exala da tenacidade absorta em rodapés e aléns e aberturas que lhe é característica, um ritmo autorreferencial e mental de informações e coceira que se mescla em algo lindo, que provoca sem ser indulgente apenas pela plena força de si e que nunca se perdoa.

Em um prefácio localizado mais de 100 páginas dentro da história, Wallace parte da “narrativa” (The Pale King sendo mais uma coleção de contos, retratos de personagens, ideias de tramas, tão inacabado quanto é) e se insere no texto como um personagem ex-auditor da Receita, falando sobre os paradoxos legais e literários de escrever a suposta “memória vocacional” que ele escondeu dentro das páginas de The Pale King. Um desvio “autobiográfico”, no qual ele, autor, tenta convencer o leitor de que tudo aquilo pertencente ao “David Wallace” (personagem ficcional do livro, universitário expulso, sofredor de severa acne) realmente aconteceu com David Foster Wallace na vida real, nos anos 80.

Sobre o autor: Quando não está lendo e dando pitaco sobre o que não sabe, Mateus Borges (@mateusb) assiste séries e escreve sobre elas para o Série Maníacos. Acha um absurdo que Lorne Michaels não seja reconhecido como um gênio moderno, e seu coração cai forte no chão sempre que alguém diz que TV não é cultura.