Há pouco tempo entrevistei Lourenço Mutarelli sobre seu livro recém-lançado “Nada me Faltará” e perguntei qual era o livro favorito de sua autoria – eu tinha lido “O Cheiro do Ralo” e o último já citado acima -, ele me respondeu sem pensar: “O Natimorto”. Mutarelli replicou  se eu teria interesse em ler e que se a resposta fosse positiva, mandaria o exemplar autografado. E foi assim que esse livro, reimpresso pela Companhia das Letras em 2009, aumentou meu interesse já existente.

Analiso a frente do maço.
Com receio, viro.
Estampado,
o Natimorto.

O livro abre com uma estrutura quase construtivista, a citação da palavra natimorto e em seguida a citação sobre uma rainha e seu rei ignorado. A partir daí, Mutarelli nos bombardeia com diálogos poéticos, crus e intempestivos através de suas personagens: O Agente, A Voz, A Esposa e o sempre citado O Maestro.

Cansado de viver a mercê de um casamento autodestrutivo, da impotência sexual e do eterno medo de desaparecer, ou tornar-se um eterno ausente, nosso narrador, o Agente, pede abrigo no hotel da Voz e logo conta histórias incríveis (remontando fragmentos dos seus medos e anseios) e suas teorias sobre as pessoas, o passado, o presente, enfim, a vida. Crendo que assim conseguirá convencê-la a não sair mais do quarto de hotel e viver protegida.

Quem nasce morto não nasce?

Não chega a ser um grande escapismo cada personagem ser representado por sua função na história. Como em “Nada Me Faltará”, “O Natimorto” não traz descrições dos personagens (pois não há realmente uma narração no sentido literal) e, sim, representações como em um baralho de tarô – suas figuras não tem nome próprio, apenas aparências e referências. No passado o Agente fora criado por sua tia, uma cartomante que lhe ensinou o que cada carta representava. A partir desse aprendizado, o personagem interpreta o verso dos maços de cigarro com suas fotos grotescas –das campanhas antitabagismo –, incluindo a posição em que recebeu, para prever como será o dia. Lendo as legendas com descaso e citando , cada uma, antes de acender mais um cigarro.

A pseudo-narração cria um labirinto – sútil – utilizado para prender e confundir o leitor que deve atentar-se as interpretações do narrador e ao mesmo tempo ignorá-las (pois o ponto de vista apresentado é dúbio) para conseguir conceber uma descrição palpável desse personagem que transborda experiências de vida, enquanto os menores soam como vilões – e a chave para encontrar culpados ou inocentes é o choque empírico do Agente e da Voz.

É curioso notar que a crescente empolgação com as novidades por parte da Voz e a tenacidade (e dependência) do Agente com suas teorias e com sua nova musa, com quem quer se refugiar do mundo que o assusta, cria uma laço estreito entre os dois transformando-os em íntimos desconhecidos.

A paranóia do personagem principal sobre o mundo imundo que está fora do quarto de hotel é construída com cuidado e fragilidade, repleta de momentos de total insanidade e, em outros, com simpatia e magnetismo, derruba o leitor que se vê em meio a um déjà vu. O vício do cigarro torna-se uma alusão ao ciclo de escolhas que a humanidade faz, isto é, se pegarmos o símbolo do infinito (aquele oito deitado), notamos que ele volta, não importando a partida, para o mesmo lugar.

Quando tudo é embaralhado e os pequenos detalhes – o eterno retorno , de Nieztsche, e o fatalismo de Schopenhauer (ambos citados nas histórias do Agente) – começam a figurar pelas páginas finais aonde notamos que a linha entre a loucura e a sanidade é tênue (e viciosa) – assim como o amor e o ódio, sujo e limpo, etc. “O Natimorto” é uma aventura pelas fobias invisíveis do cotidiano, pelo vício, orgulho e instinto dos homens – os agentes da destruição.